Como uma boa dona de casa e mãe, moradora de uma cidade do
interior, me acostumei (e adoro) ouvir “causos”, principalmente no portão da escola, enquanto
espero a saída das crianças. A muito tempo atrás ouvi um que me desencadeou
a série de pensamentos a baixo...
Ele é mais ou menos assim (como todo bom causo ninguém
afirma 100% de nada): A Tia da vizinha da minha amiga ficou viúva, más
contrariando todas as expectativas e regras sociais, após uma noite inteira de
velório e de enterrar seu esposo logo pela manhã, naquele mesmo dia, à noite, a
digníssima senhora foi para o baile. Dizem “as más línguas” que ela se acabou
de dançar, tendo sido a 1ª a chegar e a última a sair. E que, ao ser
questionada se aquele era um comportamento correto, ela respondeu: “Não vou a
um baile a 37 anos e 9 meses por que meu marido não gostava de ir, e mesmo
tendo me conhecido em um, também não me deixa ir sozinha! ”
Bom, rimos muito, fizemos piadinhas, aplaudimos e condenamos
o comportamento da senhora, simultaneamente, más claro que essa história ficou
em minha mente aquele dia inteiro, a noite toda e grande parte da manhã do
outro dia ...
Quando casamos achamos lindo, romântico, ouvimos frases como
“metade da laranja” como verdadeiras afirmações do que vem a ser o amor, nos
esquecendo que ali há dois seres distintos, totalmente formados e independentes
(ao menos, mentalmente) de outros seres.
Com o passar dos anos, se não tomarmos cuidado e vigiarmos
muito, começamos a nos esquecer de quem somos. Você já não pensa mais no
singular (Eu, você, ele), agora você é plural (vocês, nós, eles) ... A simbiose
está começando...
Pouco a pouco esse casal começa a se fundir (ok, cabe uma
piada maldosa aqui), aquele cuja a personalidade é mais, digamos, flexível,
começa aos poucos a ceder espaço para o outro. No começo são coisas bobas,
filmes na tv, sabor de sorvete no mercado, música que toca no carro, onde vai
isso ou aquilo na casa, (se vai ou não ao baile)... nada que realmente faça
falta naquele momento. É tudo em nome do amor!
Mas o tempo continua passando, a fusão continua acontecendo,
e quando menos se espera vocês já não são dois, são um. Más ainda é capaz de
enxergar beleza nisso. Se convidam um, automaticamente o outro está sendo
convidado; se é amigo de um, automaticamente o outro vai conviver; se um gosta,
o outro começa a pelo menos curtir também...Pronto, vocês começaram a virar
siameses!
Isso mesmo, vocês agora serão como irmãos siameses. “Que
exagerada! ”, “Ih, papo de mulherzinha frustrada! ”, más, se você procurar o
significado desse termo, encontrara, em meio a um mar de nomes científicos e
termos técnicos, a seguinte descrição: ”... são gêmeos idênticos separados que se unem em alguma fase da gestação por partes semelhantes...”. Reformulando essa
sentença para “são pessoas com afinidades que se unem em alguma fase da vida
por gostos semelhantes”, teremos, ao meu ver, a mais perfeita definiçção do que
vem a ser um casamento.
Como
siameses, vocês começam a compartilhar muito mais do que uma cama, um objetivo
em comum, passam a compartilhar também gostos, idas a lugares e até mesmo,
órgãos, nesse caso, filhos! Agora vocês têm uma ligação permanente. Muitas
vezes você nem se dá conta disso.
Daí um belo dia, num desses acasos qualquer, você reencontra
alguém que, acredite se quiser, só conheceu você! Isso mesmo, conheceu você em
sua forma original, solo, e em uma pergunta boba como “Você ainda escreve? ”,
ou, “Você ainda gosta de dançar? ”, te faz viver um milésimo de segundo de luto
por você mesma. “Eu escrevia? ”, “eu dançava? ”, você se pega pensando, enquanto
sorri para aquela criatura, que ousa se lembrar mais de você do que você mesma,
e ouve de seus próprios lábios saírem sons de justificativas desencontradas. Se
pega balbuciando coisas aleatórias, como filhos e correria diária... a verdade
é que você já não se lembrava mais de nada disto!
E essa mesma “criatura” afirma, não questiona, a tua
felicidade. Bom, afinal você tem casa, filhos, carro, casamento estável, como
não seria feliz? Quem em sã consciência questionaria isso? Bom, você se
questiona.
Em um ato de total rebeldia você troca a marca do ketchup,
muda de estação de rádio, de canal na TV... Você começa a querer fazer algo
apenas por você querer. Talvez faça aquele curso de dança de salão, aprenda
finalmente piano ou francês...
Em muitos casos a outra metade se adapta, se adequa, e mesmo
com possíveis efeitos colaterais (resmungos, falta de apoio e caras feias),
você ainda consegue executar pequenos rompantes de egoísmos. E assim a simbiose
segue, não parecendo mais um fardo tão pesado. O problema está em quando isso
não ocorre.
Agora vocês são 1, com 1, 2 até mesmo 3 “órgãos”
compartilhados, más com 2 mentes distintas. E como 2 mentes, ou até mesmo
almas, únicas, as mudanças que o tempo ocasiona pode não ter sido igual para
ambos. Se os objetivos mudaram? Se as
afinidades e gostos semelhantes se perderam na jornada? Se os anseios não se
completam mais? Talvez não haja mais motivos para ceder. Claro que a saída mais
óbvia seria uma intervenção, uma separação.
Más uma separação seria um processo arriscado a essa altura.
Uma cirurgia de altíssimo risco diria, onde não se tem plena certeza se ambos
sobreviveriam, se os órgãos realmente poderiam ser compartilhados e se os
mesmos se regenerariam saudáveis ... E, como bom ser humano que é, o medo surge.
O sentimento de autopreservação mais primal que temos aparece. “Como isso em
pleno século XXI? ” você questiona. Só não se esqueça de que as pessoas não são
formadas por contagem de tempo, más sim por sentimentos. Por mais antiquado que
possa parecer, o medo de envelhecer sozinho existe. E por quê passar por um
processo tão arriscado e acabar se fundindo novamente, só que agora tendo que
lidar com “alguns meios órgãos” resultantes da separação?
Daí voltamos ao causo da senhorinha lá de cima, ela se libertou
apenas porquê a outra parte da simbiose se foi? Isso é uma afirmação arriscada,
pois poderia ter sido ela a ir primeiro.
Se ela contava o tempo de casada ou o tempo que ficava sem ir ao baile,
ninguém poderá afirmar ao certo. Se
estava certa ou errada também. Se ela tivesse sido separada “cirurgicamente”
quem poderia garantir a sobrevida dela? Ninguém é infeliz durante 37 anos e 9
meses por livre e espontânea vontade! Alguns pontos de felicidade com certeza
ela teve.
A única coisa certa é que ela
estava ali, após 37 anos e 9 meses, sendo ela novamente.... Certa ou errada,
apenas ela....